domingo, 8 de janeiro de 2012

João coração sem fim

Quem nunca estudou geologia já sabe que a maior propriedade da areia é servir aos reis. Reis, mas também rainhas, príncipes, princesas e bobos, muitos bobos, que, convocados pelo grande astro e seus raios de calor, reuniram-se nesse domingo na praia do Arpoador. Sua benevolência - não a sua, muito menos a minha, mas a da areia- vinha em miudezas, do tamanho de um grão. E, de miudeza em miudeza, de grão em grão, tornava-se um tapete. Um enorme súdito entre a orla e o mar.


E foi nesse reino, nesse domingo, sobre esse tapete, que João nasceu p'ra mim.
João não era bobo.
"João, quem é você?", eu, súdita, quero saber.
João negro, braços finos e barriga cheia.
João, menino, era, de certo, a esperança p'ra toda aquela gente: A senhora que lia de óculos escuros, o Tiozão careca que alargava o sorriso, mas não largava a cerveja; O grupo de gringos -bobos da corte?- de olhar inquieto como quem procura sem saber o quê. O "quê" de jovens amigas, a magra, a gorda e a alta, esparramadas em cangas, de tamanhos não proporcionais a elas próprias. Em meio a eles, em meio a pombos, a ambulantes, ao barulho de gente, ao silencio do mar, João, mini-rei, chegou decidido a ficar.

-Vamos erguer um castelo.
"Mas joão, e o povo? e o tiozão careca, e a gorda da canga curta, e a magra da canga comprida? Onde todos vão morar?"

-Vamos construir um castelo enorme. Feito de areia e sal, de água do mar. No castelo, vai ter espaço para todos, e um teto solar. Lá, ninguém triste poderá ficar.
A segunda ordem já havia sido dada. E João não temia revoltas, porque, e sabia que, sabia agradar. Em seus cinco anos de vida, captara a importância do poder do olhar. A graça nos olhos, negros sem fim, dispensava redomas, descia-lhe do pedestal e lhe levava à conquista do povo.

- João, que castelo o quê, seu pirralho! Não sai dessa areia quente, gente, mas que coisa. Vou te levar é pro mar.

O grito inesperado ecoou por toda a corte. O pequeno e sem fim coração de João bateu acelerado. Clamor de revolta? Já? Que tipo de pessoa poderia prostestar contra um castelo de areia e sal, abrigo e garantia de fim de qualquer tristeza que ali reinasse? "João mini rei dos olhos negros e coração sem fim, não se acanhe! Não se renda à primeira dificuldade, não encha de lágrimas os poços profundos do rosto. Não flutue no mar, que a correnteza te leva e te tornas bobo, João!"


- Não! Não quero nadar, não quero o mar que a correnteza leva. Quero aqui, sobre o tapete de areia, sob o calor dos raios, construir o primeiro e maior castelo, onde nenhuma onda entrará, e só a felicidade vai reinar.

E como que num brado de guerra (e que se fizesse guerra, se necessário. "O reino por um castelo, João!"), João se tornou rei. Rei, pelo tempo que durasse sua coragem. Rei, ne guerra contra o tempo: Vencendo os anos que não o convencessem de que com areia, se constói castelos; De que com tapetes, pode-se voar.

Um comentário:

  1. Fala, minha cronista! Que o olhar continue atento, as palavras permaneçam belas e o sentimento, intenso. Beijos!!

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