Chove e é noite nublada. A gente não precisa de sol pra saber disso, basta não ver estrelas. Por um pouco mais de uma hora, eu corrompia minha rotina, atrasando minha chegada em casa. Às vezes dá vontade de fazer isso: atrasar, quebrar horários, só pra andar mais devagar, enganar o tempo e nós mesmos. Chove e eu entro no sebo, tiro da bolsa a folha amassada: Poulet, Milton Santos, Nora, nada. Nem um livro, nem um item riscado. Pesquiso sobre história, memória e espaço, penso que o prazo é apertado e que eu bem que podia ter me planejado, mas a antecedência não gosta de andar ao meu lado. Aceito comer, só pra esticar na rua. No restaurante, alguns rostos conhecidos, cumprimentos entusiasmados de quem se esbarra no acaso. Aquele lugar é bom, mas um pouco mais caro do que eu gostaria de pagar. E bem mais caro do que os quadros dali merecem. Isso é engraçado, várias mãos, tintas e traços, reunidos num mesmo espaço, vários pegadas apagadas no chão de pedra e quantas digitais lavadas na torneira de prata. Quanta gente e quanto nada. Com um amigo, divido a mesa, a conversa fiada e uma mini barra de chocolate amargo. Bom. Ainda chove, ele diz que não, a gente olha pra luz e descobre. Até o ponto de ônibus, sinais, poça, o cheiro de sopa e o metrô que passa, bem ao nosso lado, mais embaixo.
Chove e eu não quero esperar mais. Pego o primeiro ônibus que passa. O motorista avisa que vai pela Lagoa, e que pode ser mais demorado. Eu topo o atraso. No ônibus, um casal de namorados. Eles sorriem bobos, como fazem os apaixonados. Um freio e dois tiros. Secos. Um corpo caído no chão molhado. O ônibus pára e eu olho pro lado. Dois policiais armados, com o punho esticado, caminham, sem pressa, em direção ao homem estirado. A namorada grita para que o ônibus saia, corra, "que bala perdida é o que mais tem no Rio". Vida perdida. O motorista é certeiro, "se for vagabundo é bem feito. Vagabundo tem que morrer". A cobradora concorda.
Viramos na Lagoa e o motorista é certeiro, "a maré tá alta". A cobradora concorda. Em Ipanema, sinal fechado. Paramos ao lado de um restaurante caro -esse, eu vou ficar sem saber dos quadros. Do lado de dentro, a luz amarela ilumina casais e senhoras comportadas. "Um jantar são quatro semanas de trabalho", a cobradora ri. O motorista diz que ele é mais um churrasco.
O ônibus segue, mas o que ficou pra trás não pára. A cidade é movimentada e se faz entre um minuto e outro de atraso.
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