quinta-feira, 14 de março de 2013

INDIGESTOS



ELISA, (40) - Mulher insatisfeita.
RENATO,  (43) - Marido acomodado.


JANTAR SERVIDO. UMA GRANDE TRAVESSA DE BETERRABA SOBRE A MESA. ELISA ENCARA O VAZIO DA CADEIRA À SUA FRENTE E SE SERVE COM UMA ÚNICA BETERRABA. RENATO CHEGA E SE SENTA NA CADEIRA ATÉ ENTÃO VAZIA.

Renato: Esse trânsito do Rio tá impossível! Sem falar na chuva, que agora até no metrô chove! Sorte é chegar em casa e ter um jantar quentinho me esperando. Estou com uma fome, Elisa, uma fome, que você não tem ideia.  Como foi o dia?

Elisa (encarando a beterraba): Normal. E o seu?

Renato: Normal também. Amor, me passa a beterraba?

ELISA ENCARA A BETERRABA EM SEU PRATO. UM OLHAR DE SERIEDADE E PENA, QUASE HIPNOTIZADA.

Renato: Amor?

Elisa: Olha só pra ela. Tão solitária...

Renato (olha para os lados): Quem?

Elisa: Sem nenhum acompanhamento. Perdidinha na imensidão do vazio.

Renato: Do que você tá falando, Elisa?

Elisa (aponta para o prato): A beterraba.

Renato: Nem sabia que você gostava de beterraba.

Elisa: Estamos trabalhando numa nova relação.

Renato: Você e a beterraba?!

Elisa: Chega um momento da vida em que precisamos repensar nossos desejos.

RENATO NÃO ENTENDE, FICA CONFUSO. MAS PREFERE NÃO DAR CORDA PARA LOUCURA DA MULHER.

Renato (tenta pegar a travessa de beterrava): Uhm, sei. Meu bem, me passa a bete-?

ANTES QUE RENATO PONHA A MÃO NA TRAVESSA, ELISA A PUXA PARA PERTO DE SI.

Elisa: Já parou para pensar como é tênue a linha entre o “não gostar”e  o “se acomodar”? Acho que eu me acomodei em não gostar de beterraba. E passei a não gostar mesmo sem lembrar do gosto. Até um dia em que pensei: “por que não?”. E foi aí. Foi aí que ela não me saiu mais da cabeça. Já pensou nisso, Renato?

Renato: Sim.

Elisa: Sim?

Renato: Não exatamente.  Amor, tô com uma fome! A beterraba tá com uma cara ótim-

Elisa: (cochicha para ele) Sabe que até nos sonhos ela tem me perseguido? Literalmente.  Já te contei? Eu tô andando na rua e aí uma beterraba gigante aparece atrás de mim. Mas é gigante mesmo. E roxa, muito roxa. Não é fofinha como essa aí que você tá comendo, não.  

Renato: Que tô tentando comer, né, Elisa.

Elisa: Isso. Aí eu acelero o passo e ela começa a me perseguir. Ela corre, corre, corre mas eu corro mais. Eu corro, corro, corro. E quanto penso que escapei, PÁ! O beterrabão aparece e se reparte em infinitas mini beterrabinhas. Não é incrível?

Renato: Incrível.

Elisa: O que será que quer dizer?

Renato: Não quer dizer nada, amor. Sonhos são assim. Incríveis.

Elisa: Quando a gente se casou, você adorava interpretar meus sonhos. Lembra? A gente ficava a manhã toda na cama, viajando em cada significado. Até Freud a gente lia!

Renato: Normal, Elisa. Os jovens usam a fantasia pra substituir a realidade. Depois que viramos adultos, é a realidade que substitui a fantasia. (pausa) Me passa a beterraba, amor?

Elisa: Passar? Passar, Renato? Passar você passa roupa, Renato. Eu aqui falando de carinho, cuidado, relação e você me vem com grosseria. Tratando a beterraba como que se ela fosse... fosse...

Renato: Uma beterraba?

Elisa: Uma camisa amassada!

Renato: O que foi, meu amor, o que tá acontecendo?

Elisa: Nada, meu bem, deixa pra lá.

Renato: Pode se abrir comigo, Elisa.

Elisa: Não é nada. Bobagem.

Renato: Você tá com algum problema? Essa cara, essa cara que você faz é cara de problema. Precisa de dinheiro? Quer fazer escova outra vez?

Elisa: Que mané escova, Renato! Meu cabelo é natural! Não é nada disso.

Renato: Fala, Elisa. Então o que é?

Elisa: IH, Renato! Já falei que não é nada!

Renato: Então tá bom. Me passa um pouquinho de bete-?

Elisa: Então tá bom?! Esse é o problema, Renato! Não está nada bom. Você não se preocupa com o que eu penso, com o que se passa dentro de mim. Você chega do trabalho, a gente janta, você me pergunta como foi o dia, eu digo que “normal”, você diz que “normal”. A gente não consegue nem mais rir um da cara do outro! Ou contar uma piada. Você contava tantas piadas...

Renato: Elisa, mas isso é normal.

Elisa: Aí, não tô dizendo?! Normal. Normal. Normal. Normal. Eu não quero normal. EU NÃO QUERO NORMAL! Me conta uma piada, Renato.

Renato: Elisa. Eu...

Elisa: Anda, Renato, uma piada.

Renato: Eu... tá... O que é o que é...

Elisa: “O que é o que é” não é piada, Renato. Eu quero uma com história!

Renato: Com história?! Tá, tá.. Eu...

Elisa: Você não lembra né, Renato?!

Renato: Já sei! Duas beterrabas estavam atravessando uma rua. Aí uma disse para a outra: cuidado com o carro! SPLAT. A outra: Que carro? SPLAT.

RENATO FORÇA UMA RISADA. ELISA SÉRIA.

Elisa: Tinha que matar a beterraba né, Renato?! E não é beterraba. É tomate. Beterraba não faz SPLAT, faz PLOC.

Renato: Tomate, beterraba, tudo legume!

Elisa: Tomate é fruta e beterraba, raiz, Renato.

Renato: Falando em beterraba, estou faminto! Você pode, pelo amor de Deus, me passar a bete-?

Elisa: Você anda tão trágico, Renato.

Renato: Trágico? Agora eu sou o trágico?

Elisa: Você não era assim. Ah, não era. Mas não era mesmo. Não sei o que tá acontecendo. Até piada tem que ter morte! Tão agressivo.

Renato: Agressivo?

Elisa: Eu reparei o modo como você tem fechado a porta do carro. (ela imita o gesto) POW! Pra que, Renato? Pra quê isso? E pra lavar a louça? PÁ! SHHHH, Aquele jato d’água que quase arranca a mão, SHHHHH, e dale desperdício! Fico até com pena dos pratos. Agora me diz. Tem necessidade, Renato?

RENATO RESPIRA FUNDO, SENTA NA MESA, CONTA ATÉ CINCO, RESPIRA FUNDO OUTRA VEZ. ELISA O ENCARA, INDIGNADA.

Renato (com calma e diplomático): Me passa a beterraba, amor?

Elisa: É tudo o que você tem pra me dizer? Que você quer beterraba? Então, toma beterraba, Renato! (atira beterraba nele enquanto fala) Toma! Toma mais uma!

RENATO DESVIA DAS BETERRABAS E SE ESCONDE EMBAIXO DA MESA.

Elisa: Quer mais? Toma outra! (se vira pra platéia, atirando beterraba) Toma beterraba aí também! Tem p’ra todo mundo! Agora chega que tem que sobrar pro Renato. (atira nele novamente)

Renato: Que isso, Elisa? E o desperdício? Tá maluca? Enlouqueceu? Nós somos da paz, lembra? Dos Beatles!

Elisa: Rolling Stones, Renato! Nós sempre fomos dos Rolling Stones! “I cant get no, satisfaction”, lembra? É claro que não lembra, porque você não é o Renato. Não foi com você que eu me casei. A gente se perdeu. E eu estou sozinha. Sozinha. Sozinha. Sozinha. Sozinha! Como a beterraba no prato.

RENATO SAI, CAUTELOSO,  DE BAIXO DA MESA.

Renato: Beterraba essa que não tá te fazendo muito bem.

Elisa: A beterraba está me fazendo ótima, Renato! Ótima! Vitamina A, B1, B2, B5, C, potássio, sódio, fósforo, cálcio, zinco, ferro E manganês. Me dá tudo o que você nunca me deu.

Renato: E como eu vou te dar vitamina, Elisa? Eu te dou a beterraba, oras! Porque isso é verdade. Se não fosse por mim, pelo meu suor, pelo meu esforço, pelo meu trabalho “NORMAL” nos meus dias “NORMAIS”,  não teria beterrabinha nenhuma nesse seu prato! Há anos eu sustento isso calado. Agora chega. Chega. E digo mais: A partir de hoje, acabou!

Elisa (no impulso): Acabou! Ótimo, acabou. (PAUSA) Como assim acabou? Acabou o quê, Renato?

Renato: Não é isso o que você quer ouvir? Que acabou? Pois bem, acabou, Elisa! Acabou. Chega um momento da vida em que precisamos repensar nossos desejos. Não é assim que você fala? Vá procurar vitamina em outra raiz!

Elisa: Outra raiz? A essa altura do campeonato?!

Renato: O que não falta é raiz dando sopa por aí!

Elisa: Que outra raiz, Renato? 

Renato: Tanto faz, Elisa. (enfático) Tudo, tudo menos beterraba.

RENATO SAI DE CENA. ELISA SE SENTA DESOLADA E A ENCARA A BETERRABA NO SEU PRATO NOVAMENTE.


FIM.

Nenhum comentário:

Postar um comentário