ELISA,
(40) - Mulher insatisfeita.
RENATO,
(43) - Marido acomodado.
JANTAR SERVIDO. UMA GRANDE TRAVESSA DE BETERRABA SOBRE A
MESA. ELISA ENCARA O VAZIO DA CADEIRA À SUA FRENTE E SE SERVE COM UMA ÚNICA
BETERRABA. RENATO CHEGA E SE SENTA NA CADEIRA ATÉ ENTÃO VAZIA.
Renato: Esse
trânsito do Rio tá impossível! Sem falar na chuva, que agora até no metrô chove!
Sorte é chegar em casa e ter um jantar quentinho me esperando. Estou com uma
fome, Elisa, uma fome, que você não tem ideia. Como foi o dia?
Elisa
(encarando a beterraba): Normal. E o seu?
Renato: Normal
também. Amor, me passa a beterraba?
ELISA
ENCARA A BETERRABA EM SEU PRATO. UM OLHAR DE SERIEDADE E PENA, QUASE
HIPNOTIZADA.
Renato: Amor?
Elisa: Olha só pra
ela. Tão solitária...
Renato (olha para os
lados): Quem?
Elisa: Sem nenhum
acompanhamento. Perdidinha na imensidão do vazio.
Renato: Do que você tá
falando, Elisa?
Elisa (aponta para o
prato): A beterraba.
Renato: Nem sabia que
você gostava de beterraba.
Elisa: Estamos trabalhando
numa nova relação.
Renato: Você e a
beterraba?!
Elisa: Chega um
momento da vida em que precisamos repensar nossos desejos.
RENATO NÃO
ENTENDE, FICA CONFUSO. MAS PREFERE NÃO DAR CORDA PARA LOUCURA DA MULHER.
Renato (tenta pegar a
travessa de beterrava): Uhm, sei. Meu bem, me passa a bete-?
ANTES QUE RENATO
PONHA A MÃO NA TRAVESSA, ELISA A PUXA PARA PERTO DE SI.
Elisa: Já parou para
pensar como é tênue a linha entre o “não gostar”e o “se acomodar”? Acho que eu me acomodei em
não gostar de beterraba. E passei a não gostar mesmo sem lembrar do gosto. Até
um dia em que pensei: “por que não?”. E foi aí. Foi aí que ela não me saiu mais
da cabeça. Já pensou nisso, Renato?
Renato: Sim.
Elisa: Sim?
Renato: Não
exatamente. Amor, tô com uma fome! A
beterraba tá com uma cara ótim-
Elisa: (cochicha para
ele) Sabe que até nos sonhos ela tem me perseguido? Literalmente. Já te contei? Eu tô andando na rua e aí uma
beterraba gigante aparece atrás de mim. Mas é gigante mesmo. E roxa, muito
roxa. Não é fofinha como essa aí que você tá comendo, não.
Renato: Que tô tentando
comer, né, Elisa.
Elisa: Isso. Aí eu
acelero o passo e ela começa a me perseguir. Ela corre, corre, corre mas eu
corro mais. Eu corro, corro, corro. E quanto penso que escapei, PÁ! O
beterrabão aparece e se reparte em infinitas mini beterrabinhas. Não é
incrível?
Renato: Incrível.
Elisa: O que será que
quer dizer?
Renato: Não quer dizer
nada, amor. Sonhos são assim. Incríveis.
Elisa: Quando a gente
se casou, você adorava interpretar meus sonhos. Lembra? A gente ficava a manhã
toda na cama, viajando em cada significado. Até Freud a gente lia!
Renato: Normal, Elisa.
Os jovens usam a fantasia pra substituir a realidade. Depois que viramos
adultos, é a realidade que substitui a fantasia. (pausa) Me passa a beterraba,
amor?
Elisa: Passar?
Passar, Renato? Passar você passa roupa, Renato. Eu aqui falando de carinho,
cuidado, relação e você me vem com grosseria. Tratando a beterraba como que se
ela fosse... fosse...
Renato: Uma beterraba?
Elisa: Uma camisa
amassada!
Renato: O que foi, meu
amor, o que tá acontecendo?
Elisa: Nada, meu bem, deixa
pra lá.
Renato: Pode se abrir
comigo, Elisa.
Elisa: Não é nada.
Bobagem.
Renato: Você tá com
algum problema? Essa cara, essa cara que você faz é cara de problema. Precisa
de dinheiro? Quer fazer escova outra vez?
Elisa: Que mané
escova, Renato! Meu cabelo é natural! Não é nada disso.
Renato: Fala, Elisa.
Então o que é?
Elisa: IH, Renato! Já
falei que não é nada!
Renato: Então tá bom.
Me passa um pouquinho de bete-?
Elisa: Então tá bom?!
Esse é o problema, Renato! Não está nada bom. Você não se preocupa com o que eu
penso, com o que se passa dentro de mim. Você chega do trabalho, a gente janta,
você me pergunta como foi o dia, eu digo que “normal”, você diz que “normal”. A
gente não consegue nem mais rir um da cara do outro! Ou contar uma piada. Você
contava tantas piadas...
Renato: Elisa, mas isso
é normal.
Elisa: Aí, não tô
dizendo?! Normal. Normal. Normal. Normal. Eu não quero normal. EU NÃO QUERO
NORMAL! Me conta uma piada, Renato.
Renato: Elisa. Eu...
Elisa: Anda, Renato,
uma piada.
Renato: Eu... tá... O
que é o que é...
Elisa: “O que é o que
é” não é piada, Renato. Eu quero uma com história!
Renato: Com história?!
Tá, tá.. Eu...
Elisa: Você não lembra
né, Renato?!
Renato: Já sei! Duas beterrabas estavam atravessando uma rua. Aí uma disse para a outra: cuidado com o carro! SPLAT. A outra: Que carro? SPLAT.
RENATO FORÇA UMA
RISADA. ELISA SÉRIA.
Elisa: Tinha que matar
a beterraba né, Renato?! E não é beterraba. É tomate. Beterraba não faz SPLAT,
faz PLOC.
Renato: Tomate,
beterraba, tudo legume!
Elisa: Tomate é fruta
e beterraba, raiz, Renato.
Renato: Falando em beterraba,
estou faminto! Você pode, pelo amor de Deus, me passar a bete-?
Elisa: Você anda tão trágico,
Renato.
Renato: Trágico? Agora
eu sou o trágico?
Elisa: Você não era
assim. Ah, não era. Mas não era mesmo. Não sei o que tá acontecendo. Até piada
tem que ter morte! Tão agressivo.
Renato: Agressivo?
Elisa: Eu reparei o
modo como você tem fechado a porta do carro. (ela imita o gesto) POW! Pra que,
Renato? Pra quê isso? E pra lavar a louça? PÁ! SHHHH, Aquele jato d’água que quase
arranca a mão, SHHHHH, e dale desperdício! Fico até com pena dos pratos. Agora me
diz. Tem necessidade, Renato?
RENATO RESPIRA
FUNDO, SENTA NA MESA, CONTA ATÉ CINCO, RESPIRA FUNDO OUTRA VEZ. ELISA O ENCARA,
INDIGNADA.
Renato (com calma e
diplomático): Me passa a beterraba, amor?
Elisa: É tudo o que
você tem pra me dizer? Que você quer beterraba? Então, toma beterraba, Renato!
(atira beterraba nele enquanto fala) Toma! Toma mais uma!
RENATO DESVIA
DAS BETERRABAS E SE ESCONDE EMBAIXO DA MESA.
Elisa: Quer mais? Toma
outra! (se vira pra platéia, atirando beterraba) Toma beterraba aí também! Tem
p’ra todo mundo! Agora chega que tem que sobrar pro Renato. (atira nele
novamente)
Renato: Que isso,
Elisa? E o desperdício? Tá maluca? Enlouqueceu? Nós somos da paz, lembra? Dos
Beatles!
Elisa: Rolling Stones,
Renato! Nós sempre fomos dos Rolling Stones! “I cant get no, satisfaction”,
lembra? É claro que não lembra, porque você não é o Renato. Não foi com você
que eu me casei. A gente se perdeu. E eu estou sozinha. Sozinha. Sozinha.
Sozinha. Sozinha! Como a beterraba no prato.
RENATO SAI, CAUTELOSO, DE BAIXO DA MESA.
Renato: Beterraba essa
que não tá te fazendo muito bem.
Elisa: A beterraba
está me fazendo ótima, Renato! Ótima! Vitamina A, B1, B2, B5, C, potássio, sódio, fósforo, cálcio,
zinco, ferro E manganês. Me dá tudo o que você nunca me deu.
Renato: E como eu vou te
dar vitamina, Elisa? Eu te dou a beterraba, oras! Porque isso é verdade. Se não
fosse por mim, pelo meu suor, pelo meu esforço, pelo meu trabalho “NORMAL” nos
meus dias “NORMAIS”, não teria
beterrabinha nenhuma nesse seu prato! Há anos eu sustento isso calado. Agora
chega. Chega. E digo mais: A partir de hoje, acabou!
Elisa (no impulso): Acabou!
Ótimo, acabou. (PAUSA) Como assim acabou? Acabou o quê, Renato?
Renato: Não é isso o
que você quer ouvir? Que acabou? Pois bem, acabou, Elisa! Acabou. Chega um
momento da vida em que precisamos repensar nossos desejos. Não é assim que você
fala? Vá procurar vitamina em outra raiz!
Elisa: Outra raiz? A
essa altura do campeonato?!
Renato: O que não falta
é raiz dando sopa por aí!
Elisa: Que outra raiz,
Renato?
Renato: Tanto faz,
Elisa. (enfático) Tudo, tudo menos beterraba.
RENATO SAI DE
CENA. ELISA SE SENTA DESOLADA E A ENCARA A BETERRABA NO SEU PRATO NOVAMENTE.
FIM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário