Mas em razoável tempo de vida, não há quem não estabeleça preferências. E de todas as micro manias, a que mais agrada Dona Dalgiza se encontra na cozinha: Na pia. Ali, naquele espaço entre a torneira e o fundo de alumínio, entre o sujo e o mal lavado, empilhava-se todo o caos, nunca visto, de dona Dalgiza. E diante dele, ela se perdia, e perdia horas de pura contemplação. Dependia da pia para reviver seu dias e construir sua memória. Mais um domingo, e do banquinho da cozinha, a dona admira sorridente a louça acumulada do dia anterior: Duas xícaras de porcelana com borrões de chocolate, uma colher de sopa amassada e um canecão com o inscrito "Viva o Verde". A pia, sempre a maior das confissões dos melhores deleites e orgias do dia.
Manhã, as xícaras e os borroes de chocolate:
Depois de meses sem me ver, Amélia veio me visitar. A safada criou alzheimer! Quanta ingratidão! Todas nossas memórias perdidas... A tradição com Amélia sempre fora o chá de tomilho. Ela adorava. Mas ela me adorava também...e agora mal sabe meu nome, a infeliz! Anos de amizade pra isso. Não podia deixar barato. Amélia sempre destestou chocolate. Tinha pavor de cacau. Preparei dois chocalates quentes, bem amargos, pra toda amargura que sentia. E não é que a sem vergonha bebeu, lambeu os beiços gordos e pediu mais? Vai entender essa tal de memória...
Tarde, a colher amassada:
Depois de duas horas lembrando e esquecendo o endereço de casa, Amélia foi embora. Graças! Deitei na rede pra apreciar o silêncio dos meus pensamentos, quando tocou a campainha. Não era Amélia. Era Juca. Juca, Jonas e Joice, o trio elétrico. Vieram reclamar minha ausência na varanda essa manhã, mas os danados queriam mesmo eram as balas carameladas. O estoque tinha acabado. "Sem bala, a gente não vai embora, dona dalgiza". Apelei pra mágica: "Hoje vou trocar as balas por um truque de mágica". Eles sorriram e eu respirei aliviada. Peguei uma colher, o velho truque da colher amassada. Eles acreditaram tanto na força do pensamento, que, como num truque de mágica, minutos depois os três sumiram contentes. Mas não mais que eu.
Noite, o canecão "Viva o verde":
Pós soneca. Chega à minha casa um jovem: "Com licença senhora. Estamos recolhendo integrantes para participar de uma passeata aqui na rua, daqui a pouco. A causa é nobre: Defendemos a preservação do verde". Me animei, achei bonito! Não a causa, o jovem, claro. Me uni àquelas pessoas exasperadas, gente, cruz credo, que multidão. tava nervosa, quase arrependida, mas aí o bonitão me ofereceu um cigarrinho, disse que relaxava. Não é que funcionou mesmo? Tava bem zen quando olhei pra cima e li a faixa: "Marcha da maconha: Viva a legalização!". Me lembrei de Amélia, que se estivesse comigo, e se lembrasse de alguma coisa, se desesperaria com a situação. Pensei em ir embora, sumir, feito mágica, feito Juca, Jonas e Joice. Mas decidi que gostava daquilo. O bonitão continuava do meu lado.
Adorei. Pena que a pia não tinha mais louça pra revelar um pouco mais da vida de dona Dalgiza!!
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